sexta-feira, 29 de março de 2019

PENTECOSTALISMO, EXPERIÊNCIA E INTENÇÃO OBJETIVA DO TEXTO BÍBLICO


            A experiência com o Espírito Santo é algo que todos os cristãos devem buscar. É sabido que todos devem almejar tal experiência. Logo, não vejo que é necessário uma explanação sobre isso. Paulo nos informa que devemos ter experiência por meio das questões atribuladas do nosso dia-a-dia para que possamos ter esperança do encontro com Jesus por causa do amor de Deus derramado pelo Espírito Santo em nossos corações (Rm 5.3-5).
            Uma questão sustentada pelos adeptos do método pós-moderno de hermenêutica é que o método hermenêutico evangélico clássico, o histórico-gramatical, é irmão do método histórico-crítico simplesmente porque a intenção do autor bíblico é buscada pelo leitor. O desejo de buscar o contexto histórico, cultural e análise gramatical para que entendamos o que os autores bíblicos queriam é algo chamado pejorativamente de “racionalista”. Mesmo que o método histórico-gramatical proponha que a Bíblia seja inteiramente inspirada por Deus e o método histórico-crítico proponha que a Bíblia deva ser examinada como qualquer outro livro, os adeptos do método pós-moderno chamam os dois métodos de histórico-crítico. De uma forma apelativa iguala dois métodos que têm propósitos diferentes e os chama de “métodos racionalistas”.
            É verdade que há evangélicos conservadores que adotam o método histórico-crítico, como Howard Marshall, Joachim Jeremias, N. T. Wright, Craig Blomberg, católicos conservadores como Raymond Brown, pentecostais como Robert Menzies e outros. Contudo, não deixam de buscar o sentido pretendido pelo autor bíblico e permanecem crendo que a Bíblia é inteiramente a Palavra de Deus. Se há que se chamar de métodos irmãos o histórico-gramatical e o histórico-crítico somente porque se busca a intenção do autor bíblico, então o método pós-moderno em nada difere do sentimento religioso pregado pelo pai do liberalismo teológico Friedrich Schleiermacher, que desconsiderava a realidade dos eventos bíblicos, mas cria no sentimento religioso, que dava significado da realidade divina na vida da pessoa que sentia tal experiência. Para Schleiermacher:

             A Bíblia contém a verdade somente quando corresponde ao que nossa consciência religiosa nos diz que é verdade. Quando ambas discordam, a Bíblia está errada. Por conseguinte, não podemos conhecer Deus fora de nossa experiência religiosa; só podemos conhecê-lo em relação a nós mesmos, em nosso sentimento de absoluta dependência.[1]
           
            Veja que para Schleiermacher não se pode conhecer Deus fora de nossa experiência religiosa que ultrapassa o significado bíblico. Isto não se parece com o proposto pelo método hermenêutico pós-moderno? Logo, se o método histórico-gramatical e o método histórico-crítico são tão parecidos que os dois são chamados de método histórico-crítico e “racionalista”, por que, então, não se pode igualar o método pós-moderno de hermenêutica bíblica de método shcleiermacheano, portanto, de liberal?
            O método histórico-gramatical lida não com a validação da experiência, mas sim com o que o texto bíblico quer nos passar. O problema de interpretação dos adeptos do método pós-moderno é que somente pelo fato do método histórico-gramatical buscar a intenção do autor bíblico, isso quer dizer que a experiência não deve ser buscada. Não se deve adotar o jogo de soma zero. O método histórico-gramatical não examina a experiência para ter que ser dada ênfase nela para que a interpretação bíblica seja satisfatória. A experiência é filtrada pelo que orienta a Bíblia. É exatamente por isso que há um significado autoral em cada texto bíblico, sejam significados circunstanciais ou atemporais.
            Roy Zuck, hermeneuta conservador, afirma a experiência em seu livro sobre hermenêutica: “A passagem de 1 Coríntios 2.14 também afirma que o irregenerado não entende as coisas espirituais. O verbo grego ginosko (‘compreender’) não significa entender com o intelecto; significa compreender por experiência.”[2] Mais à frente, Zuck afirma algo vital do propósito hermenêutico clássico (histórico-gramatical): “a obra do Espírito na interpretação não quer dizer que ele desvende para alguns intérpretes um sentido ‘oculto’, diferente do significado normal e literal da passagem”.[3] Zuck, ao citar 1 Coríntios 2.14 e quaisquer passagens bíblicas, afirma que a experiência, mediante o Espírito Santo, é algo a ser buscado, mas totalmente de acordo com o que o significado normal e literal das Escrituras que o próprio Espírito santo inspirou.
            Zuck abre o primeiro capítulo de seu livro com a pergunta de Filipe ao eunuco: “Compreendes o que vens lendo?” (At 8.30), ao que Zuck escreve sobre essa passagem: “a pergunta ‘compreendes o que vens lendo?’ indicava a possibilidade de o leitor não estar entendendo, mas, também, que era possível entender”.[4] Percebemos que essa pergunta de Filipe deixa bem claro, ao ler as Escrituras, que o texto bíblico tem um único sentido e que deve ser buscado, do contrário, pouco importava se o eunuco entendesse ou não, o que importaria seria a experiência prévia do eunuco (ou seria o sentimento religioso schleiermacheano?).
            O que chamo de a tríade pentecostal acadêmica de maior relevância, Keener/Stronstad/Menzies, propaga a experiência como altamente necessária na vida do cristão. Craig Keener afirma categoricamente que a experiência é algo notório no ambiente pentecostal. Contudo, a experiência é filtrada pela objetividade das Escrituras:

            A espiritualidade pentecostal sempre leu as Escrituras experiencialmente. Com isso não quero dizer que os cristão pentecostais simplesmente leem as Escrituras à luz de sua experiência, embora isso às vezes seja o caso (e não somente dos pentecostais). Antes, quero dizer que especialmente lemos e desenvolvemos a nossa experiência à luz das Escrituras.[5]

            De acordo com Keener, a experiência é algo extremamente normal para os pentecostais. Entretanto, a experiência é guiada pela objetividade das Escrituras.
            Roger Stronstad deixa bem claro, em um de seus livros, que a experiência carismática do Espírito é um fato real, mas a objetividade bíblica é algo inviolado:

            Incluir a experiência carismática como um elemento na hermenêutica pentecostal não é abrir uma caixa de Pandora do subjetivismo e emocionalismo. Por um lado, a realidade objetiva da Bíblia permanece inviolada. Por outro lado, embora eles estejam em um sentido inseparável, experiência e emoção não são idênticas.[6]
           
            Robert Menzies, que é conhecido pela utilização de métodos histórico-críticos, não alija a experiência como algo essencial da fé pentecostal. Ele afirma que “a hermenêutica do crente pentecostal típico é direta e simples: as histórias em Atos são minhas histórias – histórias que foram escritas para servir de modelo para moldar a minha vida e experiência”.[7] Em outro livro, Menzies afirma que a objetividade de Lucas pode ser verificada na vida dos cristãos. A questão é que os pentecostais têm falhado em alguns momentos para que isso seja real no meio em que estão: “os pentecostais têm falhado em convencer que eles não têm sido capazes de demonstrar que Lucas pretendeu apresentar narrativas-chave de Atos como um modelo de experiência cristã”.[8]
            No site oficial das Assembleias de Deus dos Estados Unidos há dois textos sobre hermenêutica escritos por Gordon Anderson. Neles, Anderson assevera que o método hermenêutico das Assembleias de Deus norte-americanas é o método histórico-gramatical: “Os intérpretes pentecostais cuidadosos concordam com outros evangélicos de que a melhor maneira de interpretar a Bíblia é trabalhar para descobrir o significado pretendido do texto através do uso de métodos histórico-gramaticais”.[9] Mais à frente, Anderson continua:

            A visão correta é reconhecer que o trabalho da teologia é sistematizar os significados objetivos dos versos individuais em um todo coerente. Neste método, os significados originais são obtidos através do método histórico-gramatical, fundamentado na suposição de que eles têm significados fixos e objetivos.[10]
           
            Anderson, em outro momento, critica asperamente os adeptos da hermenêutica pós-moderna:

            Críticos literários centrados no leitor parecem negar que isso seja possível [descobrir a intenção autoral bíblica]. Eu argumento que eles enfatizam tanto os problemas em fazer a hermenêutica que eles a transformam em um esforço infrutífero para escapar de preconceitos pessoais que nunca conseguem chegar a um significado do texto.[11]

            É preciso deixar claro que Anderson admite que pentecostais têm seus entendimentos prévios, chamados por ele de preconceitos, na medida em que eles leem os textos bíblicos. Contudo, os pentecostais permitem que o texto bíblico mude suas perspectivas teológicas quando necessário. Com isto, Anderson, obviamente, reconhece que o texto bíblico possui significado atemporal com o propósito de ser entendido e transformar perspectivas experimentais do leitor. Anderson assim se expressa: “Os pentecostais, como todos os intérpretes têm preconceitos, mas eles o reconhecem e fazem seu trabalho interpretativo de tal maneira como permitir que o texto mude essas premissas teológicas quando necessário”.
            Para minimizar o fato das Assembleias de Deus dos Estados Unidos adotarem o método histórico-gramatical, um adepto do método pós-moderno aqui no Brasil afirmou que as Assembleias de Deus norte-americanas apropriaram-se desse método quando entraram na NAE (National Association of Evangelicals), que é a Associação Nacional de Evangélicos dos Estados Unidos. O ato de minimizar tal fato dá-se pela afirmação de tal adepto do método pós-moderno de que a NAE adota princípios neo-ortodoxos bartianos. Contudo, isto foi afirmado sem nenhum embasamento referenciado. A NAE é justamente conhecida por seu conservadorismo e seu evangelicalismo. Nada de neo-ortodoxia.
            Tal adepto do método pós-moderno de hermenêutica, afirma que Robert Menzies segue três hermeneutas que escreveram um excelente livro de hermenêutica juntos. São eles: William Klein, Craig Blomberg e Robert Hubbard. Sobre eles, afirmou-se que os três são neo-ortodoxos. O mais provável é que o adepto do método pós-moderno tenha se equivocado, pois Klein, Blomberg e Hubbard deixam bem claro no seu volumoso livro de que eles afirmam princípios conservadores e evangélicos e criticam a neo-ortodoxia de Karl Barth e Emil Brunner.[12]
            O espaço aqui não é apropriado para textos longos. Contudo, um artigo acadêmico está sendo preparado por mim acerca do incipiente método hermenêutico pós-moderno aqui no Brasil no meio pentecostal. Tal artigo acadêmico será uma crítica a obras de viés de hermenêutica pós-moderna lançados há pouco tempo, principalmente à obra mais recente.



[1] MCDERMOTT, Gerald. Grandes Teólogos – Uma Síntese do Pensamento Teológico em 21 Séculos de Igreja. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 153.
[2] ZUCK, Roy. A Interpretação Bíblica – Meios de Descobrir a Verdade da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 25.
[3] Ibid, p. 26.
[4] Ibid, p. 10.
[5] KEENER, Craig. A Hermenêutica do Espírito – Lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 68.
[6] STRONSTAD, Roger. Spirit, Scripture and Theology – A Perspective Pentecostal. Baguio City: APTS, 1995, p. 72.
[7] MENZIES, Robert. Pentecostes – Essa História é a Nossa História. Rio de Janeiro: CPAD, 2016, p. 22.
[8] MENZIES, Rober. Empowered for Witness – The Spirit em Luke-Acts. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991, p. 246.
[9] ANDERSON, Gordon. Pentecostal Hermeneutics – Part One In: https://ag.org/Beliefs/Our-Core-Doctrines/Resources?fbclid=IwAR0jSK9PEu0JKmNhl-vcNQbRa_FRORMbSfC8qbcJAl-Lx2T0fkxCPrsKojs, visualizado em 29/03/2019.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] Cf: KLEIN, William; BLOMBERG, Craig; HUBBARD, Robert. Introdução à Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. Sobre a afirmação conservadora e evangélica dos autores, cf. p. 248-252. Sobre a crítica à neo-ortodoxia da parte dos autores, cf. p. 129-130.